MEMÓRIA
É proibido esquecer Márcio Bertola
A última viagem do saudoso jornalista até Tiradentes em companhia de Sérgio Cardoso Ayres e Paulo Maia Lopes
O celular tocou naquela manhã de quarta-feira bem cedo. Eu ainda lutava em tentar recompor mais uma noite de insônia, daquelas que derrubam qualquer convicção ou sistema. Era o Claudinho Campos avisando que tinha uma notícia difícil para dar. “Sérgio, o Márcio faleceu na noite de ontem. O enterro vai ser em Tiradentes, na Igreja de Nossa Senhora das Mercês”. Depois do susto, não pude conter uma ou outra lágrima no rosto. Semanas antes, com o Márcio já bastante doente, estivera em sua casa. E nós dois, depois de uma conversa que misturava, em doses erradas, risos e silêncios, sentimos que aquele momento era uma espécie de despedida. Seu corpo fragilizado sobre o sofá não parecia em nada com o Márcio de anos anteriores. E falamos de arte diante de seus inúmeros quadros na parede, de jornalismo, de política, do seu novo livro, dos meus planos para o futuro. Na hora do adeus, depositei um beijo em sua testa e saí com o coração aflito no peito e a mente questionando a existência e sua ridícula finitude. Em sua sala, além do Márcio, um buquê de flores do campo que eu levara eram as testemunhas de que a vida não vale uma edição de jornal e muito menos um mandato de vereador.
Levantei-me e olhei no relógio, não passava de sete e meia. Liguei para o amigo e colega da Academia de Letras, Paulo Maia Lopes, um dos maiores intelectuais da cidade. Tínhamos tantos compromissos para aquele dia que resolvemos apenas acompanhar o amigo Márcio em sua última viagem até Tiradentes. Não podíamos ficar para o enterro na parte da tarde. Combinamos o horário do encontro. O dia estava claro, ensolarado. Saí para caminhar pensando na vida, na morte, no jornalismo, em Barbacena. Polêmico e inteligente, Márcio caminhava ao meu lado como o vi fazer na Linha da Oeste várias vezes. Lembrei-me da época em que trabalhávamos no jornal Cidade de Barbacena. Não éramos o que se poderia chamar de amigos, mas respeitávamos um ao outro. Ele, politicamente conservador, militava no que chamávamos naquela época de direita. Eu, esquerdista de berço, mergulhava em textos comunistas e anarquistas. Tínhamos algo em comum: o interesse pela literatura, pela cultura, pela preservação da história. E neste ponto, Márcio, sem dúvida, foi o precursor de todos esses movimentos atuais, que, como presidente do atual Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico, posso garantir sem medo de errar. Ao longo de duas décadas nossos caminhos se cruzaram várias vezes. Assim passamos a cultivar o respeito um pelo outro, apesar de nossas diferenças políticas, como ele sempre frisava sorrindo.
Questionador, sem temer cara feia, Márcio Bertola escreveu no jornal Cidade de Barbacena, na Folha de Barbacena, no Correio da Serra, além de inúmeras reportagens em grandes jornais, como o Estado de Minas e no O Tempo. Entrevistou personalidades e era amigo de muitas, como Emeric Marcier, Ângelo Oswaldo, Sobral Pinto, Ângela Gutierrez, entre muitas outras, como políticos, jornalistas e artistas. Escrevi em seu site e ele em nosso jornal, o saudoso “O Democrata”. Márcio foi amigo de alguns e adversários de outros, mas ninguém ficava impune diante de sua sagacidade jornalística, cujo retrato está no livro “É proibido esquecer”, lançado em 2005. Sabia como provocar, como agradar, como revelar segredos e esconder outros. Mesmo morto, para mim, continua sendo o maior e melhor colunista da cidade, pois sabia unir o que acontecia no salão com o que acontecia nos quartos do município, além de sua influência cruzar as fronteiras de Minas Gerais. E tudo com um tempero irônico. Ele, literalmente, sabia de tudo. De tudo! Eu mesmo, em algumas vezes, fui vítima de suas frases e, em outras, elas mesmo me elogiaram. Assim era o Márcio Bertola.
O Paulo Maia, nosso sucessor do rabugento Correa de Almeida (como escrevia Márcio com “e”), chegou na hora combinada. Fomos até o necrotério da Santa Casa e chegamos a tempo de sermos, junto com o professor José Augusto Penna Naves, os únicos a verem o seu caixão ser fechado na cidade em que nasceu. Carregamos o corpo até o carro funerário. E partimos para Tiradentes. Com seu estilo pausado e sagaz, Paulo Maia contava casos de sua amizade de mais de 30 anos com o Márcio. Falamos de tudo, desde fofocas jornalísticas, de casos engraçados, de sua habilidade de escrever apesar de nem haver terminado os estudos, de seus desafetos e confusões. Lá fora, o sol fazia com que a poeira da estrada brilhasse feito ouro. E ríamos de nossa dor, da perda de um amigo, das bobagens de uma Barbacena provinciana, dos últimos meses da doença de Márcio. Os minutos passavam como as curvas e, ao entrar em Tiradentes, estávamos exatamente atrás do carro funerário que transportava o seu corpo.
Chegamos à Igreja de Nossa Senhora das Mercês por volta de onze horas. Lá estava Claudinho com os últimos preparativos para o velório. Quando, no cemitério da velha e bela igreja, vimos o imenso e belo ipê-rosa, trocamos, eu e Paulo, um olhar de cumplicidade. E rimos. Sim, Márcio soube escolher até a hora de morrer e o local a ser enterrado. Ficamos por ali alguns minutos e, diante dos compromissos, fomos embora. Mas estávamos cientes de haver cumprido uma missão: a de acompanhar o corpo de Márcio em sua última e longa travessia. Sem Caronte por perto, voltamos no mesmo ritmo: tristes, mas risonhos. Despedimo-nos em Barbacena e, até hoje, mais de uma semana depois, ainda trocamos e-mails falando do Márcio, de sua morte e do ipê-rosa. Nossa única preocupação agora, além de uma estranha saudade e de que o jornalismo está quase acabado no município, é uma espécie de pedido à sua família: preservem o acervo de fotografias, de documentos, de obras de arte de Márcio Bertola. Este, sim, junto com o respeito, advindo da admiração ou do temor, o seu maior tesouro em vida. Em morte, felizmente, somos todos iguais: pobres! E durante muitos anos, com certeza, apesar da memória curta dos barbacenenses, será proibido esquecer Márcio Bertola. Enquanto isso, o barqueiro Caronte nos espera para a última travessia...
*Texto inédito de Sérgio Cardoso Ayres escrito poucos dias depois da morte do jornalista Márcio Bertola, ocorrida em julho de 2007.