Sérgio Ayres escreve a primeira crônica reborn da literatura mineira
Por Sérgio Cardoso Ayres
Membro da Academia Barbacenense de Letras
Era novamente outra vez, em um mundo confuso de erros e acertos, em que as tentativas intentavam contra as intenções, sendo que o que importava mesmo era a aparência. E nessas repetições, um disfarce para o imutável diante da mobilidade da realidade, havia uma cidade no alto da serra em que tudo, mas tudo mesmo, até o nada e o impossível, ostentava uma peculiaridade assustadora em que as possibilidades feneciam diante da imposição do engano. Em outras palavras, o logro era a sílaba mágica que compunha discursos. É que, de forma inexplicável, as coisas simplesmente pareciam, mas pareciam tanto que, complexadamente, não eram as mesmas. A tal da realidade ultrapassava qualquer ficção, mesmo as mais absurdas ou insanas em que nem Júlio Verne arriscaria intentar. Esse paradoxo tinha uma razão de ser: o hiper-realismo havia tomado conta do município de uma forma tão absurda que uma nova verdade havia substituído as já existentes. Ser ou não ser, à revelia de Shakespeare, não importava mais. O que valia era a possibilidade de ser, mesmo não sendo. “Não sou, mas quem é?”, sussurravam as esquinas e as paredes ruidosas que separavam lares e repartições.
Mas não pense que essa aparência era mentira ou ilusão de ótica. Não! E nem mesmo o mistério humano que é envolvido pela inteligência artificial. Um velho mundo renascia com ares de novidade que nem mesmo os ventos da liberdade sopravam da mesma forma em Minas Gerais para fazer as velas das procissões rufarem e as bandeiras dos mastros navais se agitarem num oceano de enganações. Não das cinzas da fênix, a ave mitológica que todos juravam já ter visto voar, mas das torres mais sombrias de velhas igrejas barrocas e das ladainhas de beatas e sacristães, surgia uma cidade renascente, ou melhor, reborn. Sim! Um município que, no fundo mais profundo do rio das Mortes, renascia para ser o que não era. E esse ar de novidade, que só mesmo as redes sociais justificam, se repetia cotidianamente em harmonizações faciais e replicantes rondando prédios que alcançavam os céus. Por essas e outras, é que seus moradores acreditavam em tudo que não era, mas que parecia ser de uma forma tão convincente que deixar de ser era quase o mesmo que ser quem não era. E o que era, na verdade, já deixara de ser. Isso há muito tempo. E assim, do nada, que era tudo, eles viviam felizes sem o serem. Aliás, não havia mais caminhos, nem velhos e nem novos, que pudessem ser percorridos de mãos dadas com a incerteza de que a vida já possuiu um dia ou duas noites. A dúvida cedeu sua insegurança para uma certeza que servia para fortalecer a voracidade em que a tolice ganha ares de sapiência.
O ver para crer morrera como algo abjeto, junto com os olhos perseguidores de São Tomé. O que importa é ver o que as aparências fomentam. Tomé, coitado, arranjara um emprego público para negar quantas vezes fosse necessário, bem mais que as três de Pedro, que a verdade era apenas uma aparência, quase os cinco extremos de um crucifixo que trazia uma beatitude que rivalizava com a recusa de acreditar que a imagem, mesmo que fosse de um, dois ou três santos, pudesse significar a remissão através da salvação em quatro ou oito anos. A eternidade, por início, não passava de uma noite sem fim. Em seu âmago, aquela intimidade em que sabemos o que somos, mas que nunca fomos, como o mistério que envolve o retorno dos que nunca foram, tipo um Lázaro impostor, sentado numa esquina qualquer entre os campos e as vertentes, a cidade ruminava seu destino igual a um bebê reborn ou renascido passa suas horas mordiscando o seio de uma esquecida princesinha das vertentes se alimentando de sonhos e desejos. Mas, na verdade, que era mentira, ou na mentira que seria uma verdade, ruminar essências de ser o que não era, nem que por apenas dois ou três instantes, só serve para inflar egos.
E Parmênides, o filósofo que afirmou que “o ser é e o não ser não é”, explicando que o ser é porque existe e indica a si mesmo, e o não ser não é já que não existe e não possui identidade, caminha cabisbaixo pela periferia da Zona da Mata pensando que nada valeria mais a pena do que tudo. Ou vice-versa.
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