O cronista Sérgio Cardoso Ayres não resiste e comenta que voltamos sempre ao início de nós mesmos
AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ
Sérgio Cardoso Ayres
MEMBRO DA ACADEMIA BARBACENENSE DE LETRAS
Eu não saberia relatar, pelo menos com a devida e necessária exatidão, o que na verdade aconteceu ou o que deixei escapar por absoluta incompreensão das voltas que o mundo dá. Sei que viver é muito mais impreciso do que a precisão de navegar. Mas não é possível se guiar pelas estrelas em dias nublados e nem sonhar quando a insônia se faz amante com sua sedução de olhos arregalados. No máximo, se equilibrar com sofreguidão na lei da gravidade. Ou, quem sabe, fingir suavidade nos traços rudes do rosto contrariado. Um dia, e disso me recordo muito bem, apesar do mal que me causou, a noite estava demorando de forma excessiva a descer sobre a Serra da Mantiqueira. Não que o sol insistisse em fazer iluminância em pleno final da tarde em que o astro rememorava em ser redondo sobre a Boa Morte. Era muito mais uma sensação estranha de masoquismo com as horas excessivas, além de benevolência com a insistência do tempo em não se deixar conduzir pela normalidade, do que uma tragédia anunciada nas manchetes dos telejornais ou na previsão de visionários. Nem as redes sociais capturavam verdades ou emitiam notícias falsas.
As horas passavam como as mãos nervosas durante um crime de assédio pelo corpo alheio. Mesmo assim, a tarde se arrastava como uma serpente de duas cabeças, com cada uma delas com suas próprias ideias, dúvidas e caminhos a seguir. Ao longe, perto de onde eu estava, a cidade queria acender suas luzes coloridas sobre a Basílica, mas não havia esperança suficiente para tanto júbilo. Eu me dividia entre a indignação com a fraude no INSS, a tal da camisa vermelha para a seleção de futebol e a escolha do novo papa. Não que essas questões ocupassem imaterialmente o meu vazio existencial. De forma nenhuma! Nesse espaço eu guardava quatro alegrias, três dúvidas, duas angústias, um pedaço de chocolate que sobrou da Páscoa e lágrimas e sorrisos em profusão. O cotidiano, apesar da resistência em fragmentar o tempo que ainda temos, exige paciência em repetir os mesmos gestos e nunca chegar a um lugar em que possamos ter alguma certeza sobre tudo que nos compõe e nenhuma indagação sobre o nada que nos persegue como uma sombra provocada pela luz do celular na hora da selfie.
Depois de outra volta do mundo sobre mim, seu eixo imaginário em busca do equilíbrio sem lei, em que um sonífero é a referência entre os opostos, mesmo ausente de estrelas e pesadelos, a noite ainda insistia em não descer como de hábito sobre a Mantiqueira. Confuso, cheguei a supor que seria a claridade do dia, ao invés da escuridão noturna, que reinava sobre dúzias de pequenas existências repletas de vertentes espalhadas por um campo minado. Ali, cada passo era algo feito retornar a si mesmo. Se ainda pudesse acumular mais uma alegria ou sorrisos em profusão? Mas, o que precisava, de alguma forma de lados desiguais, era não ser mais do que poderia ter sido. Talvez, outrem. Há fracassos que supõem omissões, como a ausência de barracas de ferramentas e panelas no Jubileu ou de duplas sertanejas como maritacas repetindo seus bordões do agronegócio.
Cansado pelo longo dia sem fim e impaciente em esperar pelo abrigo da noite, fechei a cortina, apaguei a luz, coloquei tampões nos ouvidos e vedei os olhos. Tateando como um elogio à cegueira dos que podem, mas não querem enxergar, pensei sem fazer barulho de choques de neurônios que, se lá fora a noite não vem, aqui dentro a única fraude sou eu, não preciso de papa e nem de camisa amarela ou vermelha. Assim, em meio a essa conclusão, acordei de um sono profundo embalado por soníferos como um poço sem pêndulo ou fumaça branca no Vaticano. Enfim! Era só realidade. Ainda bem! E nada mais, além do pedaço de chocolate que sobrou da Páscoa...
Imagem: Detalhe de vitral no Espaço Cultural Banco do Brasil (BH) - Foto: Sérgio Ayres
LEIA TAMBÉM:
- Ler & Pensar | Sérgio Cardoso Ayres "Debaixo da Compadecida"
- Ler & Pensar | Adolescência
- Ler & pensar | O outono como um aviso
- Ler & Pensar | Como fazer sucesso na Rua Quinze
- Crônica | José, o Papa e o Jubileu