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Ler & Pensar | O leitor nem sempre tem razão quando o assunto é amor



Querer uma história de amor com final feliz é o mesmo que pedir a um escritor que morra e depois faça o seu testamento

 

Sérgio Cardoso Ayres

MEMBRO DA ACADEMIA BARBACENENSE DE LETRAS

 

Outro dia, um antigo e exigente leitor de minhas crônicas, que não poupa elogios quando julga que mereço, mas que também sabe ser ferino e cruel quando me critica, depois de fazer as duas coisas com intensidades diferentes, já que criticou muito mais do que teceu elogios, disse com ar de tédio que estava cansado de ler meus artigos sobre assuntos como política municipal, desencontros, crises existenciais, diálogos irônicos e dívidas impagáveis com o destino. E, com um ar desafiador de quem nunca escreveu nada mais denso do que lista de compras de supermercado e alguns bilhetes sedutores para a vizinha, olhou fundo em meus olhos sem entender a vastidão das minhas olheiras e nem a profundidade das minhas rugas, e perguntou:

- Mas, Sérgio, por que você não escreve uma história de amor com final feliz?

Não lembro o que respondi – se é que encontrei algum argumento para disfarçar a minha surpresa e minimizar o jargão jornalístico que apregoa que o leitor sempre tem razão. De amor, pensei, com final feliz? Surpreso, retruquei para mim mesmo: quem é que ainda acredita e, pior, escreve sobre isso? Amar, antes de tudo, inclusive da palavra escrita, dói. E dói muito. Faz sofrer. Escrever, vivendo o ato como eu vivo, então, seria tortura. Até que sou meio romântico, saudosista, seria o termo certo, mas não em literatura, pois ela é tão amorosa quanto ingrata e só me retribui sofrimento e dúvidas. Não posso simplesmente continuar escrevendo flores e paixões enquanto a literatura me responde com solidão e realidade. Minha resposta para o leitor deveria ter sido: como pode um amor ter final feliz se os amantes juram amor eterno? Escatologia?

Vim para casa revivendo, uma por uma, minhas aventuras amorosas e minhas crônicas sobre o tema – algumas até autobiográficas. Se na vida, por mais de uma vez, tive a certeza de que os finais sempre foram dolorosos e insuficientes, alguns até trágicos e outros finais que nem sequer tiveram início, como os contemplativos, e esses provocaram arrependimento pelo que não aconteceu, tive muito mais trabalho e tristeza com as crônicas. Amor, vida real e literatura não servem nem para um trisal. Depois de várias horas procurando em meu arquivo uma crônica em que o amor triunfasse num final feliz, percebi, aborrecido, que o leitor tinha lá sua razão. Sobre o amor, eu encontrei muitas, mas felicidade não é nem começo e nem fim nelas. A literatura, muito mais para quem lê do que para quem escreve, ou ama, serve para realizar o que não conseguimos na vida real. E o amor que leva à literatura tem muito mais combinações do que quatro letras em ordem alfabética: a, m, o, r.

Com meu débito descoberto com a felicidade amorosa, e assustado com o lado psicossomático dessa lacuna imperdoável em minha obra, resolvi que a próxima crônica, que é essa que ainda tento escrever, seria uma história de amor com final feliz. Assim, até tentei algo no estilo Jane Austen, com muito orgulho e preconceito; Victor Hugo, com Quasímodo e Esmeralda; e Emily Bronte, com morros e uivos. Até mesmo tentei entender a relação entre Capitu e Bentinho, de Dom Casmurro, o que apenas me deixou apreensivo. Mas, infelizmente, revelo, descobri que entre resolver e executar, a distância que existe é muito maior do que entre amar e ser correspondido – pelo menos em literatura. Quase desistindo, remexi impaciente em meus escritos particulares, no estilo de um diário secreto, procurando uma ideia, bilhetinhos, um texto, qualquer aforismo, contos, poemas, enfim, qualquer coisa que pudesse me ajudar nessa tarefa árdua. Não encontrei – só desamor, equívocos, impossibilidades e solidão. Esses tesouros, quando revelados, perdem em muito o seu valor.

Como o problema era o final, já que todo amor que começa é uma promessa de realização, consultei mais romances e até encontrei finais aproveitáveis, como “e foram felizes para sempre”, “selaram o pacto com um beijo e voltaram para casa” e “sim, foram feitos um para o outro”. Com a fórmula na ponta dos dedos, ao invés de satisfeito, me senti desconfortável. Tudo soava meio falso, sem graça, tantos dissabores e obstáculos para terminar daquele jeito vago, impreciso, mentiroso. Achei que era preguiça de escritor, um recado para o abandono em que as amadas abandonam seus amores ou incompatibilidade entre ficção e a realidade. Não sei. Amor com final feliz tem que ser grandioso, passional, violento. Ou será uma casinha própria, um punhado de filhos e muitas prestações para pagar? Eterno enquanto dure, como inventou Vinicius. Mas, a única conclusão a que cheguei foi a de que meu amigo leitor e crítico era um pouco chato – me perdoe a franqueza, mas isso não é amizade. Acho que ele nunca amou e não entende nada de final feliz. Muito menos de literatura.

Eu continuava precisando de uma história e de um final feliz. E de amor, muito amor, para conseguir unir as duas coisas. Pensei em criar uma personagem apaixonada inspirada numa mulher do mundo real e inventar um final feliz para um suposto romance literário entre nós dois. Enfim, uma crônica. Mas qual? Não, muito alta e empertigada. Nem pensar, bebe muito e ama pouco. Não, burra demais. Nunca, fala mais do que um papagaio. E se eu juntar todas elas numa realidade virtual através da IA? Não, a mistura seria explosiva e minha criação me dominaria com facilidade. Tentei apelar para o cinema. “Casablanca”, “Nove e Meia Semanas de Amor”, “Nunca Te Vi e Sempre Te amei”. Cheguei até “Lagoa Azul”, “Love Story” e “Vidas Amargas”. Mas continuei sem meu final feliz.

Tamanha dificuldade me fez pensar que era exatamente essa a razão de fugir dos finais felizes nas histórias de amor. A experiência empírica me demonstrou que amor, feliz e final não combinam muito. Pelo menos em literatura. E o exemplo pode ser Romeu e Julieta – nem Shakespeare conseguiu o tal do final feliz! Quase escrevi para o leitor alguns impropérios só para dizer que se ele quer um final feliz que escreva a sua própria história de amor e me deixe em paz. Mas leitor merece respeito. Sem ele, pelo menos para mim, não existe final feliz e nem amor.

Sem uma saída louvável, nem literária, o que é mais grave, eu fiquei como quem não tem amor – prisioneiro de minha própria liberdade de ser feliz sem precisar de um final. Só podia, e é o que eu faço agora, reconhecer com sinceridade o meu fracasso em escrever uma história de amor com final feliz. E essa incapacidade encontra em minhas crônicas sua manifestação ideal. E essa foi, talvez, a primeira crônica que, as entrelinhas, como uma mulher fatal, me prenderam numa paixão incontrolável. Mas não pense que esse é um final infeliz. Não. O amor tem muito mais facetas do que um mero cronista possa supor. E o leitor, quem sabe, talvez tenha errado de escritor – isso acontece! Mas amor com final feliz em minha literatura, isso ainda não fiz. Fico devendo. Talvez seja uma limitação mesmo. Tem gente que lança livro e nem sabe escrever...

Espero que um dia, quando finalmente estiver apto para escrever a tal da experiência do final feliz, eu consiga encontrar uma história de amor para o enredo. Ou será ao contrário? Não quero prometer, nem mais tão caro amigo. Por isso, é melhor dizer, para não correr riscos, que talvez na vida - na minha, na de outro leitor ou na sua - seja muito mais provável o próprio amor protagonizar uma história com felicidade no final. Na minha literatura, sinto muito, por enquanto, nem final e muito menos feliz.

(Nov/1996 – Jul/2025)

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