Ler & Pensar | Como fazer sucesso na Rua Quinze



Com seu jeito brejeiro de mineiro, Sérgio Cardoso Ayres ensina como fazer sucesso na Rua Quinze 

COMO FAZER SUCESSO NA RUA QUINZE

Sérgio Cardoso Ayres

Membro da Academia Barbacenense de Letras

 

Outro dia, sem muita coisa para fazer, apesar de andar sempre apressado como que estivesse atrasado para um compromisso com o destino, esse anjo torto que me persegue desde que nasci, saí caminhando pelo centro da cidade. Dessa vez, ousei imitar Baudelaire em seu flanar por Paris – claro que respeitando as devidas diferenças e com aquele ar brejeiro mineiro ao invés da arrogância francesa. Como todos sabem, sou muito mais amigo da prosa do que da poesia. Assim, se flanar é meio que poetizar o ato de percorrer caminhos diários sem a devida atenção do dia a dia, quase uma tensão, passear pela rua Quinze de mãos dadas com a prosa é um exercício de admiração, ou de desespero, como diria Cioran, aquele pensador romeno engolido pela melancolia da existência em Paris.

A rua Quinze, para o barbacenense, é semelhante ao tapete vermelho por onde desfilam as celebridades em dias de festa, como em Los Angeles na entrega do Oscar. Confesso, apesar de ser um ilustre desconhecido neste trajeto barbacenense, que percorro essa glória diariamente – várias vezes. Um dia sequer sem pisar no tapete vermelho da rua Quinze é semelhante ao esquecimento. Com quase quarenta anos de rua Quinze, e usando a minha inteligência artificial, essa loucura que encanta os jovens e provoca tédio nos mais velhos, fiz um cálculo cujo resultado foi assustador: eu já dei a volta ao mundo duas vezes e gastei mais de cem solas de sapato nessa passarela. Não acredita? Faça as suas contas e vai se surpreender! Este pequeno pedaço do paraíso, que vai do Rosário até o Jardim Municipal, às vezes até o Jardim do Globo, é o deleite do barbacenense. Nem mesmo os shoppings conseguem abalar esse trecho semelhante a um paraíso.

Começamos pelos congestionamentos constantes, momentos que servem para exibir o carro novo, branco de preferência, apesar das prestações atrasadas. Isso é status! E, se estiver caminhando, é a hora do corpo malhado, prendendo o ar para segurar a barriguinha, em roupa de ginástica ou conjuntinho da moda, tipo cropped ou a recente calça jogger. É a glória de ser observado, confundido, invejado, odiado e por aí vai. Falem mal, mas falem de mim. O trecho do Rosário até a Caixa serve para os preparativos. Ali, na Caixa, que tem sempre uma multidão, vale caprichar no estilo. E, depois, até o Jardim, é levantar o queixo e curtir seus 15 minutos de fama – isso, caminhando bem devagar. Se o passo for rápido, apenas 5 minutos. Os estabelecimentos bancários são um caso à parte. É preciso caprichar na roupa para fingir que está conferindo suas aplicações bancárias e não retirando apenas 50 reais do caixa eletrônico. Affff! Nas inúmeras farmácias, faça cara de saúde. Pega bem!

As lojas populares, com seus preços convidativos, são um perigo. É olhar para um lado, para o outro, e entrar e sair sem ser visto. Imagina! Para manter o estilo, não atravesse a rua em qualquer lugar. Só nas passarelas. É chique! Sacolinha de supermercado, nunca. Nem pensar! E atenção redobrada na calçada. São tantos buracos que um tropeção pode virar fofoca nas bocas malditas ou até vídeo nas redes sociais. É o fim de uma carreira vitoriosa. Cuidado também com os cachorros, pois sua natureza é morder. Já pensou? Se parar para conversar com um conhecido, atenção! É chique falar mal do governo, em todos os níveis, principalmente do prefeito. Ao celular, recomendamos falar alto. Isso chama bastante a atenção. Se vir um chato pela frente, finja que recebeu uma ligação. Faz parte!

Chegando perto do Jardim Municipal (nunca chame de Praça dos Andradas, que já ficou demodê), tome cuidado! O risco de atropelamento nas esquinas é grande. Se é para morrer, só na Afonso Pena. E nada de se sentar no ferro do Bias. Vai saber! Também está fora de moda. E nem pensar em parar para ver o pessoal jogando truco. Pode queimar o pouco que restou do seu filme. Um café no Ouro Verde (já viu ouro da cor verde?), só se for na xícara, nada de copo. É vexame junto com a imensidão do pão de batata. Comprar artesanato dos hippies pode, já que é moderno contribuir para a economia criativa. Na região pós-rua Quinze, ou seja, da Matriz em diante, é área de risco. Vale falar mal do padre, hoje bispo, que conseguiu cortar as velhas e retorcidas árvores para plantar essas que nem sombras dão. Mas cuidado para não ser visto resmungando nas enormes e constantes filas do supermercado. Pega mal! Como é chique nas grandes cidades utilizar o transporte coletivo, faça cara de cidadão consciente no ponto de ônibus do Barbacenense.

Bom, chegando no Jardim do Globo, o momento é de disfarçar e de conferir se ninguém está olhando para você. Feito isso, escolha um local discreto e, na maior cara de pau, dê a volta. Isso mesmo! A volta. E recomece seu trajeto com orgulho pela rua Quinze até o Rosário. E não se preocupe: todos um dia já fizeram isso. Inclusive eu!

(Crônica revisitada no Jornal EXPRESSO de Maio/2023)

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