Ler & pensar | O outono como um aviso



O verão ainda resistia no calendário preso por um frágil ímã na lateral esquerda da geladeira.

Obra do artista plástico pernambucano Lula Cardoso Ayres (1910-1987)

   Obra do artista plástico pernambucano Lula Cardoso Ayres (1910-1987)

 

Sérgio Cardoso Ayres

Membro da Academia Barbacenense de Letras

A chuva batia sem força no vidro da janela do quarto. Era mais um sábado após uma semana que passou correndo feito um trem atrasado por mais uma estação abandonada do interior de Minas Gerais. O verão ainda resistia no calendário preso por um frágil ímã na lateral esquerda da geladeira. Já perdera a conta de quantos outonos e invernos entraram e saíram de sua vida. Só ele permanecia sem contar verões e primaveras. Não tinha explicação essa matemática sem sentido. Mas era assim que funcionava a sua velha soma dos nove fora. Aproximou o rosto da janela com o intuito de revelar ainda mais os detalhes da basílica de São José, mas o vapor de sua respiração embaçou o vidro e deformou a cúpula. Foram dias quentes, os anteriores. E os mais anteriores ainda. Muito quentes. Dias que provocaram, além de noites insones, tolas, modorrentas e banais dúvidas existenciais em nome do ontem. Não questionava o amanhã como muitos fazem com receio do vindouro. Pelo contrário, esperança era o que não faltava. O que o seu olhar, emoldurado atrás de duas lentes, desafiava mesmo era o passado. E, como vimos, os verões e primaveras. Do primeiro, o calor e a euforia juvenil provocavam calafrios e depois tédio. Da segunda, as cores e discursos causavam melancolia, e os aromas, enjoo. Talvez a idade fosse a raiz dessas afecções tão humanas. Talvez!

Já na cozinha, riscou insistente, igual à dificuldade de fósforos umedecidos esquecidos sobre a pia, os últimos dias do verão do calendário e saudou, com um café bem quente, a manhã e a chegada do outono. As duas estações do meio do ano eram as suas preferidas. Não que odiasse as outras. Nada disso. Fazemos escolhas – umas certas, outras confusas e algumas erradas. Lá fora, a chuva cessara e um leve movimento das nuvens anunciava duvidosas claridades e, quem sabe, um ou outro mesmo tom de azul no céu. Bem mais animado após uma noite de sono, em que conseguiu, depois de meses, se cobrir com o manto seguro de uma velha e familiar colcha, resolveu dar uma volta - não as que os cães dão atrás dos próprios rabos, mas aquelas em que o retorno é algo além da linha que limita horizontes e aquém da que revela realidades por separar destinos. A cidade ainda despertava como uma bela adormecida: sem entender patavina do que acontecia em seu entorno. Mas, que, logo em seguida, após puxar a memória como um chiclete esticado entre os dentes e os dedos indicador e polegar, relembra que o mundo tem olhos e ouvidos por toda parte.

Nem subindo morros e nem descendo ladeiras, caminhava despreocupado imitando as inúmeras tentativas de uma criança, sem conseguir por muito tempo ou passos, se equilibrar sobre o meio-fio irregular que separa sem desunir as fases mal definidas da vida. Há muito tempo perdido pela estupidez alheia que não se sentia assim, digamos, suspenso com a leveza com que uma folha seca ensaia se desprender do galho e alçar o voo impróprio dos seres fragmentados e sem vida. Mesmo desequilibrado pela força da gravidade, que costuma surpreender os incautos, apesar de a vida pesar muito menos do que a mão de uma criança em nosso ombro, como disse o poeta itabirano, a cidade resumia o mundo, repisando os nossos passos ao cruzarem os múltiplos caminhos dos verões da infância, ao tropeçarem nas ilusões dos amores da primavera e ao se sentarem por um minuto para descansar na maturidade do outono. Aqui, nem ansioso e muito menos seguro pelo que acumulou de materialidade na vida, o que viria não o preocupava mais. O inverno era só uma questão do tempo reencontrado nas dobras e nós do que se foi.

A manhã ainda respirava frescor ao retornar à sua casa. Foi até a janela e reviu com clareza as curvas da cúpula da basílica. Dali até a gaveta da mesinha do escritório foi como atravessar jornadas de duas gerações. Abriu a gaveta e lá estava o mesmo bilhete de anos atrás, mas num envelope que comprara no ano passado apenas para proteger o conteúdo. Abriu e leu a velha frase de sempre. Dessa vez, não chorou. Mas também não sorriu.

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