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Ler & Pensar | De Santos e de Finados - a crônica de Sérgio Ayres



O cronista Sérgio Ayres vaga entre os dias de Todos os Santos e o de Finados

Sérgio Cardoso Ayres

MEMBRO DA ACADEMIA BARBACENENSE DE LETRAS

 

Eu nunca precisei ver para crer. E muito menos crer para ver. Entre acreditar e enxergar existe, pelo menos para mim, um universo de impossibilidades que nem a fé e a clareza de visão conseguem dirimir. O olhar vigilante, obtuso e doentio, a crença indubitável, insana e profética, escondem existências à esmo e revelam medos congênitos. Se, de um lado, a razão feneceu nas doses diárias inoculadas pela descrença, do outro, a escuridão desceu seu manto de incertezas como sombras, confundindo as retinas na ausência da luz. Há muito tempo que nem Tomé, o santo, nem Moisés, o proscrito, são capazes de desnudarem verdades e muito menos fazerem o oceano abrir portas por onde possamos passar ilesos pelas dúvidas. E, ao mesmo tempo, as ondas não conseguem evitar que os males nos persigam pelos caminhos repletos de moluscos e conchas. Quando a dúvida se faz presente, a ausência em si mesmo nos transforma em pequenos oásis de sonhos e pesadelos. Jonas, engolido pela baleia, e Noé, timoneiro da nau dos insensatos, não ouviram o canto demoníaco das sereias nos empurrando contra as rochas.

Um dia, confesso, crer eu cri. Não que me arrependa de deixar a razão de lado na busca insana de acertar o alvo em cheio. Agostinho, que viveu entre os prazeres antes de sua conversão, sabia muito bem que o mal não reside na satisfação dos desejos mundanos. A carne, quando exposta, apodrece junto com o esvoaçar das moscas. Por isso que ele defendia a união da razão com a fé numa espécie de duas cidades de referência: uma terrena, em que os arquitetos somos nós, e outra, a de Deus, em que não somos o que somos e sim o que imaginamos. O que veio na mesma direção de Tomás de Aquino como uma flecha, que apregoava que razão e fé não se opõem, mas se complementam como unha e carne. De parábolas em parábolas, passei de João para Pedro e deste para Paulo. Não neguei, não lancei a rede ao mar e nem fiz do batismo a renovação. Na ausência dos milagres, da água vertida em vinho, derramei lágrimas de devoção pelos mistérios humanos. Que os deuses devotem a si mesmos. Eu não tenho forças para me iludir.

Uma noite eu fui crente. Sem temor ou receios. Mas nem bem a lua girou no centro do céu para eu perceber que tudo à minha volta não passava de cães raivosos atrás do próprio rabo como se ele fosse a verdade absoluta em seu abanar. Em outra, a descrença abriu seus janelões coloniais para espantar o mofo dos móveis e das cortinas de renda branca. E vieram os sermões, vieram as montanhas. E tudo que Moisés fez foi apontar o seu cajado em direção ao horizonte na tola ilusão de que a verdade fosse única. Nossa insignificância transforma delírios em futuros. Se a cova é profunda, o peso da morte é leve. Se, pelo contrário, for rasa, os vermes podem mirar as nuvens.

O dia em que cri era de todos os santos, mesmo daqueles que fraquejaram ao amanhecer. A noite em que fiz louvores era a de finados, daqueles que tombaram na vida pela sua própria finitude. Caminhei pelos cemitérios de minhas almas. Vaguei de túmulo em túmulo, não em busca de ausências, mas, pelo contrário, de certezas. Neles, não encontrei sequer lembranças e nem depositei rosas ou troquei a água dos vasos. Que os profetas se virem sozinhos com suas profecias de fim do mundo. Que os deuses façam o que quiserem de suas divindades. Mas nenhum deles conte comigo nem sequer de um a dez. Eu já estou morto demais para crenças. Cego em excesso para visões. Finado demais para esperanças. Tolo em excesso para rosas e flores.

Tudo o que almejei foi o esquecimento, o poder sem querência, a espera sem ansiedade, as batalhas sem forças. Cinzas. Por favor, não façam de mim suas próprias memórias!

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