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Ler & Pensar | A crônica de Sérgio Cardoso Ayres "Assombração"



O cronista Sérgio Ayres mostra que tem medo de assombração

ASSOMBRAÇÕES...

Sérgio Ayres

Membro da Academia Barbacenense de Letras

Claro que não dá para diferenciar entre os que estão mortos e os que ainda estão vivos. Todos eles, para os que enxergam na escuridão, são sempre os mesmos – apesar de existirem os outros. Contrastam apenas no tempo de morte e de vida. Muitos anos para os primeiros e poucos para os demais. Mas isso nem sempre é uma regra. Existem as exceções, os que morrem cedo e os que vivem demais. Esses são os outros, aqueles que só sabem de si mesmos e não vivem ou morrem a partir do tempo que lhes resta ou falta. Mas eles não contam, afinal, a terra não foi feita para todos – e muito menos quando se trata de covas ou de assombrações que vagam em quartos de hotel ou perdidos em famílias comuns. E ainda temos os que se escondem nos últimos bancos de coletivos e metrôs ou, impacientes, vagam inalterados pelas avenidas das grandes cidades ou pelos becos de lugarejos do interior de Minas Gerais. Nem mesmo o sol ilumina toda a escuridão. E a noite, essa sim, sempre nos espera ao final do dia, seja ele qual for, já que o espectro noturno, sua essência, é sempre a mesma. A noite que representa o fim de tudo aquilo que não houve. Ou seja, o negror da incerteza. A luz, que ausente, lamenta não poder mais iluminar. As casas e apartamentos vazios são antros para a imaginação. Mas as ruas, essas sim e aquelas não, abrigam os que passam e não voltam. Esses são iguais aos que morrem tarde demais e decaem lentamente pelas cidades como mortos-vivos. Porém, são diferentes. Dividem uma dose de morfina entre a dor e o torpor, espantam surpresas e fúrias. Vagam insones tanto pelos sonhos de outrem quanto pelos pesadelos dos vizinhos.

Existem aqueles que caminham pelo mundo com soberba, apesar de serem sombras do que foram um dia. Têm sorte. Continuam sendo. Indiferentes à realidade, mas sem objetivos. São viajantes. Turistas de outras dimensões em que roubar sonhos é algo corriqueiro. Seus desígnios são impróprios para desalmados. Mas, coitados, não sabem qual a matéria que os compõem. Tristes, porém não perdem a envergadura, embora suas sombras estejam sempre à frente de si mesmos. Desfilam como ondas na maré cheia, uma atrás da outra contra as rochas das impossibilidades. Ambiciosos, têm o mundo todo à disposição. Só que não encontram prazer nisso: são prisioneiros de suas sempre e mesmas liberdades. O que possuem de verdade é que continuam desconhecidos, sem velhos ou novos amigos. Não, não pagam nenhum preço pela solidão. São sortudos nas aparências, mas de destino inglório para o que já foram. Não assustam ninguém!

Piores mesmo são os que caminham sem saída pelas ruas do bairro em que nasceram. Limitados. Azarados. Foram. São aqueles que procuram em noites e dias o reconhecimento em faces alheias e desfiguradas. Esses anseiam o esquecimento. Podem estar num carro abandonado pelas curvas, numa esquina sem sentido e contradição ou mesmo até atrás de uma porta fechada pelo vento que entra pela janela da sala que um dia reuniu amantes. Mas eles se encontram mesmo naquele lugar identificado como nenhum. Estão em quase todos os bares e inferninhos da região, sem beber ou flertar. Isso foi presente um dia, mas agora é passado. Não sabem, escuro, se ficam ou seguem, claro. Não cabem nas calçadas. Nunca passeiam de mãos dadas. Estão sempre com uma pressa injustificável. Saudosistas, fazem do anonimato duas certezas: a da morte e a da vida. São os outros. Solitários em meio a um mundo de lembranças. Fuja deles. São perdidos! Se não puder, fique em silêncio e só observe.

As mortes são muitas. Há vida em todas elas. Relações entre o humano e o urbano. Como uma cidade grávida. Um corredor fantasma. Um indigente. Dois prédios em demolição. Um aborto. Os vivos não os veem. Os mortos não sonham com eles. Mas ambos têm pesadelos - mesmo insones. Os que morrem não vão nascer novamente. São pagãos. Os que vivem vão morrer. São viajantes do tempo. Épocas longe do ontem e do hoje também. Bairros e mundos dispersos. Entulhos. Desalmados pelo abandono.

Assombrações...

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