Featured

ANTES DE ONTEM



O cronista Sérgio Ayres se perde entre o antes, o ontem, o hoje e o amanhã

Sabe esses dias em que estamos distraídos, em que tanto faz que o mundo acabe em fogo ou água, em que o inferno e o céu têm para nós a mesma dimensão, em que a vida assume que não lhe interessa sentidos ou objetividades? Pois é! Esse dia para mim foi antes de ontem. Eu não vivia nenhuma crise existencial ou estava imerso em alguma euforia momentânea provocada por medicamentos. Muito menos preocupado com os fatos do dia e dia e nem perguntaria, caso tivesse que subir ou descer de elevador, se iria chover ou aumentar o calor. Andava mais em círculos pelo meu entorno do que traçando linhas retas na busca de alcançar um horizonte qualquer. Esse era eu anteontem! Uma pessoa quase normal, isso se tivéssemos parâmetros para medir quem somos em relação ao ano de 2025. Digo quase por causa de algumas peculiaridades, como falar sozinho, verificar várias vezes se fechei a porta do apartamento ou conferir novamente se guardei no local certo aquele documento importante que nunca precisarei dele outra vez. A idade, ao invés de trazer segurança, coloca dúvidas onde só havia indiferença. Como assim? Não sei explicar, apenas me descontento ao envelhecer.

Mas o ontem chegou bem cedo, a cama ainda estava quente quando abri os olhos e me vi em um lugar que nada tinha de familiar. Parecia que meu quarto era Gaza destruída e que israelenses armados estavam de tocaia do lado de fora. Ou, pior: estava na favela do Alemão cercado por policiais comandados pelo governador carioca, observando os corpos enfileirados em plena praça. Pensei em ir ao banheiro, tomar café e olhar pela janela seriam suficientes para desanuviar. E foi o que fiz. Mas não foi! Da janela, ao invés de ver as montanhas mineiras, eu passei a assistir a uma espécie de telejornal de horrores que nada mais era do que o cotidiano de um dia banal. Claro que estranhei e coloquei a culpa na humanidade, na ex-esposa, no vizinho, na infância e até em minha mãe. Só que, aos poucos, fui percebendo que o mal maior, se existe diferença entre intensidade nas maldades, estava em mim mesmo e que eu não era outro – se é que dá para entender o fato de ser ou não ser, que também já deixou de ser uma questão vital e se transformou em conveniência por inapetência. Eu era o que nunca fora ou seria um dia.

Fechei a janela e me joguei no sofá da sala. Ali, intercalado por minutos de alheamento e horas de sadia solidão, em que não queremos nem a nossa companhia, venci a manhã de uma forma obsoleta: desperdiçando a vida com a certeza de que os juros bancários compensariam depois. Talvez fosse fome, pensei. Troquei a roupa e fui almoçar em qualquer um dos self-services do centro da cidade. A comida no prato olhava para mim sem emoção. O estômago embrulhou mais do que presente de Natal desinteressante. Suspirei mais do que aspirei o ar e a tontura me fez ganhar ou perder a rua. Não lembro. A tarde foi se desenrolando como uma fieira na mão de uma criança que não sabe fazer girar o pião. Eu nunca soube!

Entre passos e passionalidades, o entardecer lançou sombras sem mesmo perguntar se havia sol ou se o verão começara. E eu continuava por ali e acolá, sem sequer tomar consciência do que não acontecia ou com a realidade. Ou seja, nada! As luzes se acendiam igual a pequenos focos de incêndio na serra da Mantiqueira. Fez-se noite e tudo continuava indiferente, principalmente aquele que eu julgava que fosse eu.

E o entorno de mim se fez familiar. Eu havia voltado ao apartamento e a noite já ia baixa, quase se arrastando pelo chão frio de cerâmica da cozinha feito um bebê que ainda não aprendeu a andar. O sofá olhou em minha direção, mas não me viu. Pudera, havia me transformado em um estranho que espera que venha o amanhã, mas não tem esperança e nem ansiedade pelo vindouro. Daí para frente, pelo contrário, só havia o para trás, ou seja, o já acontecido, o desperdício consciente. Não lembro o que veio depois. Ou se o depois veio. O antes se dissipara sem deixar vestígios ou rastros. Quando me entendi novamente, aqui estava, no hoje, aflito por não ser mais o amanhã, o ontem e muito menos o anteontem. Não senti alívio. Só comoção!

 LEIA TAMBÉM:

Siga o BarbacenaMais no Instagram X Facebook