As facilidades que nos tornam idiotas morais



Todos os dias, no mundo todo, milhares de pessoas de baixa renda, miseráveis e pobres, morrem no planeta, seja pela fome e pelas guerras, seja pela discriminação, falta de acesso a direitos básicos e, principalmente, vitimadas pelo mais preocupante nível de segregação humana: a segregação pela facilidade. Leia mais...

ARTIGO

As facilidades que nos tornam idiotas morais

Num dia que deveria ser normal, ela saiu naturalmente pela rua de sua casa em direção ao trabalho, numa travessa de uma importante capital do país. Pouco antes de dobrar a segunda esquina, uma moto invade o passeio, atingindo-lhe em cheio.

O motociclista, filho de influentes políticos de classe média alta, em sua motocicleta de aproximadamente R$ 100 mil, nada sofre. Em breves minutos, no entanto, a moça negra, de família carente do interior, assalariada em uma lanchonete, morre.

Praticamente no mesmo momento, mas a cerca de 1 km dali, uma outra mulher dirige seu carro falando no celular (Iphone 6) e, não percebendo o sinal vermelho, bate frontalmente em um ônibus. Igualmente em poucos minutos, tal como a jovem negra, a jovem branca, filha de médicos da capital, morre.

No outro dia as manchetes dos jornais estampam a trágica morte da filha dos médicos renomados e sua foto pode ser vista em várias mídias. O enfoque jornalístico não está no erro da jovem, mas sim na tragédia familiar daqueles relevantes membros da sociedade.

Por outro lado, a jovem negra e assalariada, morta de forma igualmente trágica, não teve sequer uma nota. O motociclista de pais influentes, nunca foi mencionado.

Esse é um acontecimento que eu conheci há cerca de 4 anos. É um fato que poderia muito bem ser remetido aos dados da violência no trânsito, da imprudência e inconsequência de condutores. No entanto, o uso aqui para uma reflexão mais profunda.

Todos os dias, no mundo todo, milhares de pessoas de baixa renda, miseráveis e pobres, morrem no planeta, seja pela fome e pelas guerras, seja pela discriminação, falta de acesso a direitos básicos e, principalmente, vitimadas pelo mais preocupante nível de segregação humana: a segregação pela facilidade. É um termo que agora crio para facilitar o entendimento.

O que seria a segregação pela facilidade? Nada mais é que a segregação calcada nas facilidades que todos temos em julgar, menorizar, humilhar e subtrair outras pessoas.

São facilidades que todos praticamos muitas vezes, sem sequer percebermos, mas que precisam ser pensadas, estudadas e debatidas, pois elas são as maiores responsáveis pelas maiores desgraças sociais do mundo. São responsáveis por todos os processos de discriminação e violência de classe, cor, gênero e etnia existentes. São responsáveis pela dor e sofrimento de milhões de pessoas, de maneira velada e altamente forte. Dentre as diversas formas de práticas da segregação pela facilidade, algumas são substanciais.

Nos casos descritos nos primeiros parágrafos, por exemplo, foi muito mais fácil para as mídias divulgar a morte trágica da jovem loira e de olhos azuis, rica, que a morte de uma jovem negra e pobre, provocada por filho de políticos.

Fácil, pois ainda que a jovem tragicamente falecida no automóvel estivesse errada no trânsito, sua foto estampada no jornal renderia maior comoção na “sociedade”. É a facilidade da estética patrocinada, que lança ao abismo social uma quantidade incalculável de pessoas. A verdade é que é fácil amar o “bonito”, o “belo”. É fácil querer se apaixonar pelo rapaz de corpo escultural, ou pela mulher estilo “dançarina do Tchan”. Também é fácil demais se comover com a tragédia na França e não se importar muito com as vítimas da favela, da lama da Samarco ou da violência policial.

É fácil torcer pela vitória da coalizão “antiterrorismo” e torcer contra os islâmicos. É fácil assistir Big Brother e deixar de ler a Carta Capital. É fácil criticar e propor mudanças sentado no sofá, sem nunca ter feito nada por ninguém. É fácil lançar a culpa da poluição nos outros e desconsiderar o lixo que você joga na rua.

É fácil imaginar Jesus Cristo branco, de longos cabelos castanhos e olhos claros que imaginar ele da forma como certamente foi, pardo, de cabelos crespos e de baixa estatura.

Enquanto patrocinarmos a padronização, lançaremos ao caos todas e quaisquer possibilidades de equidade possíveis. Do belo ao feio, do esteticamente aceito ao absurdo existencial, da necessidade de criticar ao fazer prático, do respeitar e admirar à real existência da justiça... um caminho longo existe.

Um caminho fadado à não certeza da chegada, mas cuja travessia precisa ser buscada e construída já. Somente dessa maneira a humanidade poderá perceber que, em si mesma, ela é uma espécie dentre tantas outras, e que precisa aprender a conviver consigo mesma antes de aprender a conviver com qualquer outra coisa. Enquanto não soubermos nos respeitar, valorizar as diferenças e amar sem distinções, não haverá qualquer possibilidade de mudança e, sem essa, toda a violência discursiva, física e simbólica ainda continuarão a existir e persistir. A verdadeira compaixão existe somente quando você fecha os olhos


Delton Mendes Francelino - Diretor Internacional do Instituto Curupira, Pesquisador em Ciências Ambientais e Culturais, Urbanismo E Sustentabilidade, Gestão e Planejamento e Áreas Naturais

 

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