‘Mentira como commodity’: STF aceita denúncia contra núcleo que espalhava fake eleitoral



Os investigados agora passam a responder a ação penal pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado

Primeira Turma do STF julga denúncia sobre o núcleo 4. Foto: Rosinei Coutinho/STF

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou por unanimidade, nesta terça-feira (06), a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o chamado 'núcleo 4' da trama golpista ligado a desinformação e ataques a autoridades. 
Os investigados agora passam a responder a ação penal pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado. Ao todo, já são 21 réus investigados, dentre eles, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
 
Segundo as investigações, os integrantes desse grupo são acusados de promover ações coordenadas de desinformação, disseminando conteúdos enganosos sobre o processo eleitoral — especialmente quanto à confiabilidade das urnas eletrônicas —, além de realizar ataques virtuais contra autoridades e instituições, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
 
A denúncia afirma que “[os integrantes] propagaram notícias falsas sobre o processo eleitoral e realizaram ataques virtuais a instituições e autoridades que ameaçavam os interesses do grupo. Todos estavam cientes do plano maior da organização e da eficácia de suas ações para a promoção de instabilidade social e consumação da ruptura institucional” (páginas 26-27). 
 
A estrutura era composta por policiais federais cedidos à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e oficiais de inteligência que atuavam sob o comando do então diretor-geral Alexandre Ramagem, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. 
 
Neste núcleo, a PGR denunciou:
  • Ailton Gonçalves Moraes Barros, major da reserva do Exército;
  • Ângelo Martins Denicoli, major da reserva do Exército;
  • Carlos Cesar Moretzsohn Rocha, engenheiro e presidente do Instituto Voto Legal;
  • Giancarlo Gomes Rodrigues, subtenente do Exército;
  • Guilherme Marques de Almeida, tenente-coronel do Exército;
  • Marcelo Araújo Bormevet, agente da Polícia Federal;
  • Reginaldo Vieira de Abreu, coronel do Exército
Todos agiram em comunhão de esforços com os integrantes dos núcleos 1, 2 e 3 para consecução do objetivo comum, que era o de violência e grave ameaça [para] manter-se no poder e impedir regular o funcionamento dos poderes da República e depor o governo legitimamente eleito.
– Cláudia Sampaio Marques, subprocuradora-geral da República
 
Nessa fase processual, é examinado apenas se a denúncia atende aos requisitos legais mínimos exigidos pelo Código de Processo Penal para a abertura de uma ação penal, ou seja, se a acusação apresenta provas da prática de crimes e indícios de autoria. 
“Não foi irrelevante”
Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação no STF, afirmou que a ação criminosa não se tratava somente de disseminação de publicações “irrelevantes”, como alegou a defesa dos réus. Para Moraes, a denúncia da Procuradoria-Geral da República mostra que os denunciados fizeram parte de uma estrutura, dentro de uma organização criminosa, que auxiliava na propagação de notícias fraudulentas contra urnas eletrônicas,” inclusive com a produção de documentos”.
 
Fizeram parte de uma estrutura que auxiliava a ampliação de informações contra o Poder Judiciário, contra a Justiça Eleitoral, tentando incentivar parcela da população contra o Supremo Tribunal Federal. É essa a acusação, é esse o contexto. Não se trata aqui da acusação de uma pessoa que simplesmente repassou uma notícia para outra [pessoa]. [...] É um núcleo atuando em conformidade estratégica com outros núcleos, cada um dentro das suas tarefas.
 
– Alexandre de Moraes, ministro do STF
 
Moraes também reforçou em seu voto que o núcleo utilizava exatamente o mesmo modus operandi das chamadas “milícias digitais” no âmbito do inquérito das fake news. “A organização criminosa se valia fortemente do meio digital para atacar os seus opositores e o sistema eleitoral no curso das iniciativas corrosivas, das estruturas democráticas, confirmando a existência de uma ação coordenada", alertou.
O ministro ressaltou ainda que a denúncia da PGR traz provas, como trocas de mensagens entre os denunciados, que reforçam a ação coordenada do núcleo com a finalidade de criar  uma narrativa a ser difundida contra as urnas eletrônicas e contra a lisura das eleições “para manter os apoiadores [de Bolsonaro] mobilizados". 
 
A ministra Cármen Lúcia também reforçou em sua fala que não é possível minimizar a desinformação nessa ação coordenada, como tentou alegar a defesa. Para ela, a disseminação de conteúdos enganosos é “um instrumento que se vale para destruir a confiabilidade institucional". 
 
É a mentira como commodity e não [como] bem, paga-se por isso [...] para comprar a antidemocracia e por isso que, para mim, não é só um meio, mas um instrumento de que se vale para chegar ao fim. É uma mentira e muitas vezes, nestes casos, tem sido usada como um meio, um instrumento específico para uma finalidade. [...] A mentira é um veneno político plantado socialmente e exponencialmente divulgado.
 
– Cármen Lúcia, ministra do STF
 
Para o ministro Flávio Dino, não há dúvidas sobre a materialidade das provas apresentadas pela PGR. Para ele, “houve uma ampla mobilização não institucional, mas uma mobilização de indivíduos integrantes das Forças Armadas e indivíduos integrantes de forças policiais". “Isto não pode ser naturalizado, esse é o ponto fundamental, não se pode em relação a este caso, qualquer outro caso, imaginar que fake news se cuida de uma brincadeira de amigos, ou se cuida de um desabafo, ou se cuida de um mero ato. [...] Ela pode conduzir a desastres de difícil ou de impossível reparação", ressaltou.
Como funcionava o núcleo da desinformação
De acordo com a denúncia da PGR, o núcleo atuava como central de contrainteligência da organização criminosa que, “por meio dos recursos e ferramentas de pesquisa da Abin, produzia desinformação contra seus opositores”.
 
A ação clandestina usava de forma ilegal sistemas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). A espionagem se dava por meio de um sistema chamado First Mile, desenvolvido pela empresa israelense Cognyte.
 
A subprocuradora-geral da República, Cláudia Sampaio Marques, lembrou que houve também a elaboração de um relatório contendo dados falseados para obter a anulação dos votos constantes das urnas fabricadas antes de 2020. “Essa ação foi baseada no relatório feito sabidamente com dados falsos. O objetivo era exatamente conduzir a opinião pública e a sociedade à convicção de que as urnas eletrônicas não eram confiáveis e que o resultado da eleição não correspondia à real vontade do eleitor", reforçou, em sua fala.
 
Semanas após o 2º turno das eleições presidenciais, em 22 de novembro de 2022, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, e outros integrantes da sigla 
 das urnas fabricadas antes de 2020. O documento entregue ao TSE era de uma auditoria realizada pelo Instituto Voto Legal (IVL), feita a pedido do PL.
O log é um arquivo comum em sistemas computacionais que registra todo o histórico de eventos relevantes. No caso das urnas, esse arquivo informa a data e o horário em que o dispositivo foi ligado ou recebeu votos, por exemplo. Não há relação direta com o registro e a contagem dos votos, que são armazenados em outros arquivos.
De acordo com a petição do PL, todas as urnas modelos UE2009, UE2010, UE2011, UE2013 e UE2015 teriam gerado arquivos de log em que não constavam seus próprios códigos identificadores — o que, segundo a sigla, poderia prejudicar “a vinculação entre a unidade física – urna eletrônica – e o documento gerado por ela”. Entretanto, como demonstram as provas na denúncia da PGR, já se sabia que nenhuma irregularidade havia sido encontrada.
Segundo a denúncia, uma série de troca de mensagens do então presidente do Instituto Voto Legal, Carlos Cezar Moretzsohn Rocha, com Éder Lindsay Magalhães Balbino, sócio-proprietário de uma empresa de análise de dados, reforça que o relatório técnico apresentado “era expressão de sabida e desejada deturpação de dados" (página 151). 
Live do argentino
A preparação de conteúdos falsos sobre urnas eletrônicas teve, segundo a PGR, a contribuição do major da reserva Angelo Martins Denicoli. O investigado, de acordo com a denúncia, mantinha vínculo com o influenciador argentino Fernando Cerimedo que, durante as eleições de 2022, apresentou um suposto dossiê que comprovaria fraude nas urnas eletrônicas. Uma das alegações feitas pelo argentino era de que algumas urnas usadas nas eleições não tinham sido auditadas, dando vitória a Lula. A informação foi desmentida pelo TSE. Dias depois, foi divulgado o relatório das Forças Armadas, que não apontou fraude no processo eleitoral de 2022. 
 
O influenciador argentino também publicou um print de uma imagem que supostamente provaria que o código-fonte da urna eletrônica é capaz de armazenar o nome do eleitor, quando votou, onde votou e em quem votou. "Agora temos em mãos os nomes e votos de 100% dos eleitores", postou. Lupa desmentiu conteúdo semelhante.  O TSE explica em seu site que não há como saber em quem o eleitor votou. 
 
De acordo com a PGR, as falsidades disseminadas por Cerimedo haviam sido fabricadas “por pessoas ligadas à organização criminosa”. ​​Os diálogos de WhatsApp encontrados no aparelho celular do ex-ajudante de ordens da Presidência da República e tenente-coronel Mauro Cid reforçaram a proximidade entre Denicoli e Cerimedo.
 
A denúncia reforça a Abin como instrumento de espionagem contra autoridades e o uso da desinformação como tática deliberada. Um dos exemplos citados é um comunicado elaborado pelo ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem e endereçado ao então presidente Jair Bolsonaro. O documento continha orientações pessoais para embasar declarações sobre supostas fraudes nas urnas eletrônicas, sugerindo os argumentos mais eficazes a serem utilizados. Entre as inverdades que constam no texto está a alegação de que Bolsonaro teria vencido as eleições de 2018 ainda no primeiro turno, o que é falso. 
 
Em seu depoimento à Polícia Federal, Ramagem se defendeu afirmando que costumava escrever textos de fontes abertas para “comunicação de fatos de possível interesse do então Presidente da República” e informou ainda que isso “não quer dizer que tenha transmitido ao presidente a totalidade ou parte dos argumentos que foram redigidos" (página 41). A PGR, entretanto, afirma que os arquivos citados foram compartilhados com o ex-presidente. Ramagem se tornou réu em 26 de março.
 
Trecho de documento de Alexandre Ramagem. Foto: Reprodução
O que disse a defesa dos réus
A defesa do major da reserva do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros afirmou que o investigado não poderia ser acusado como pivô dos atos de 8 de janeiro, porque ele só tinha 2 mil seguidores nas redes sociais e, portanto, não teria influência na disseminação de conteúdos enganosos. “Não é demais lembrar inclusive que o acusado foi indevidamente e exaustivamente exposto na mídia porque seria autor de áudios que depois se confirmaram não ser dele, em evidente prejuízo a sua vida privada e também à condução das investigações deste caso".
 
Para a defesa do major da reserva do Exército Ângelo Martins Denicoli, há uma tentativa de responsabilização por atos de terceiros, e que não há justificativa para a adesão do investigado na denúncia “baseada em uma reportagem”. “Porque tudo se baseia em uma reportagem publicada que, por sua vez, foi baseada em um print de um Twitter [sobre as postagens de Fernando Cerimedo]”. Alegou ainda que outras pessoas cometeram atos iguais aos do acusado e não foram denunciados e negou o elo existente com o influenciador argentino.
 
Segundo a defesa do subtenente do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues, o investigado não tinha acesso à ferramenta First Mile quando trabalhava na Abin e ele não era subordinado a Alexandre Ramagem. A defesa do tenente-coronel do Exército Guilherme Marques de Almeida, por sua vez, afirmou que não houve trocas de mensagens com Mauro Cid e que o réu não produziu o vídeo disseminado, “ele apenas exerceu seu direito de expressar sua opinião particular que a ele é garantido constitucionalmente". 
A defesa do agente da PF Marcelo Araújo Bormevet também negou o uso do sistema First Mile para espionagem e disse que a denúncia não mostra a relação causal para os fatos da condenação. Já a defesa do coronel do Exército Reginaldo Vieira de Abreu também negou os fatos e afirmou que não há nenhuma evidência significativa que poderia levar a participação do réu nessa empreitada de organização criminosa. 
Por sua vez, a defesa do engenheiro e presidente do Instituto Voto Legal afirmou que o réu produziu relatórios ao PL que foram entregues “de maneira confidencial”. “Em nenhum momento houve uma distinção que possibilitasse que o engenheiro Carlos Rocha levasse isso para outro canto, levasse isso para a imprensa [como forma de atacar o sistema eleitoral]. [...] Ele esteve no Senado Federal e perguntado se havia o risco de fraude no sistema da urna eletrônica, disse claramente, ‘não, não há, não há fraude no sistema eleitoral’”.
Próxima fase
A partir deste momento, os denunciados se tornam réus. Uma ação penal será aberta e terá início um processo que vai julgá-los pelos crimes supostamente cometidos. 
Seguindo o rito da instrução processual, poderão ser marcadas audiências, oitivas de testemunhas, expedição de ofícios para coletar outros documentos, apresentação de documentos pelas defesas, coletas de novas provas pela acusação e defesa. Somente após essa fase, o Poder Judiciário poderá decidir pela absolvição ou condenação dos réus, estabelecendo as penas a serem cumpridas em caso de condenação.
O tempo de pena pode variar conforme a condenação e pode chegar ao total de 43 anos: Organização Criminosa Armada (3 a 17 anos); tentativa de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (4 a 8 anos); golpe de Estado (4 a 12 anos); dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio público (6 meses a 3 anos) e deterioração de patrimônio tombado (1 a 3 anos). 
Entenda o inquérito
A denúncia apresentada pela PGR é resultado das investigações da Polícia Federal (PF), em inquérito divulgado em fevereiro de 2024. A organização criminosa, diz a PF, precisou “ampliar a sua frente de ação”, incluindo o uso ostensivo da máquina pública para interferir diretamente no processo eleitoral. O texto da PF cita, por exemplo, o uso da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para dificultar a votação de eleitores, principalmente da região Nordeste, no 2º turno da eleição.
 
Em fevereiro deste ano, a PGR apresentou sua denúncia mostrando que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados tinham conhecimento de que não havia indícios de fraude nas urnas eletrônicas. Mesmo assim, eles continuaram a disseminar informações falsas sobre o processo eleitoral a fim de criar um ambiente de desconfiança para justificar um possível rompimento da ordem democrática, diz a procuradoria-geral.
 
Em 26 de março, além de Bolsonaro, também tornaram-se réus Alexandre Ramagem (deputado federal pelo PL e ex-chefe da Abin), Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional - GSI), Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa) e Walter Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil e da Defesa).
 
Em 22 de abril, a Primeira Turma do STF aceitou por unanimidade denúncia contra o chamado 'núcleo 2' da trama golpista. Tornaram-se réus: Fernando de Sousa Oliveira, (delegado da Polícia Federal e ex-secretário-executivo da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal); Marcelo Costa Câmara (coronel da reserva e ex-assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro), Filipe Garcia Martins Pereira (ex-assessor especial de Assuntos Internacionais de Bolsonaro), Marília Ferreira de Alencar (ex-diretora de Inteligência do Ministério da Justiça na gestão de Anderson Torres), Mário Fernandes (ex-número dois da Secretaria-Geral da Presidência, general da reserva e homem de confiança de Bolsonaro) e Silvinei Vasques (ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal).
 
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