É diante deste fato, que faço uma analogia ao Dia Nacional de Consciência Negra no Brasil e indago a seguinte pergunta. Hoje, passado 66 anos do boicote aos ônibus nos Estados Unidos, se no Brasil surgisse uma negra, do povo, pobre, empregada doméstica, morando na favela, na periferia, com 42 anos, reclamando do preço e das condições do transporte, conclamando todos a fazerem um boicote ao transporte, o que aconteceria com esta mulher, não em relação ao estado ou ao racista, mas às atitudes dos próprios negros? Os negros brasileiros iriam apoiá-la, ou não?
O que o Dia Nacional de Consciência Negra tem a ver com o movimento de boicote aos ônibus
liderado por Rosa Parks nos Estados Unidos na década de 50
Por Angelo Sátyro - Antropólogo
Rosa Parks é uma mulher negra nascida nos Estados Unidos que em dezembro de 1955 se negou a levantar e ceder o seu lugar no ônibus a um jovem branco. Ela preferiu se levantar e sair do ônibus do que ir para o fundo, e mais para o fundo deveria seguir de acordo com que outros brancos fossem chegando e ocupando os lugares da frente. Isso aconteceu em Montgomery, capital do Alabama. Promovendo uma desobediência civil, ela saiu deste ônibus e liderou o maior boicote de ônibus da história dos Estados Unidos. Dando inicio a uma série de outros movimentos sociais negros. Negros e negras em solidariedade ao boicote, andavam 20, 30, 40 km a pé diariamente em vez de que pagarem ônibus. Com a ausência de passageiros negros, houve baixa nos lucros das empresas de ônibus e na arrecadação de impostos pelo estado, o que fez com que tal segregação fosse abolida e negros e negras conquistaram o direito de se sentarem à frente nos ônibus. Este movimento envolveu a população negra americana não só na e da cidade de Montgomery, mas de vários outros estados. Este ato de boicote é considerado um dos principais, senão o principal ato rumo aos direitos civis nos Estados Unidos da América.
É diante deste fato, que faço uma analogia ao Dia Nacional de Consciência Negra no Brasil e indago a seguinte pergunta. Hoje, passado 66 anos do boicote aos ônibus nos Estados Unidos, se no Brasil surgisse uma negra, do povo, pobre, empregada doméstica, morando na favela, na periferia, com 42 anos, reclamando do preço e das condições do transporte, conclamando todos a fazerem um boicote ao transporte, o que aconteceria com esta mulher, não em relação ao estado ou ao racista, mas às atitudes dos próprios negros? Os negros brasileiros iriam apoiá-la, ou não? Os negros brasileiros estariam dispostos a andar 20, 30 ou 40 km como os negros norte-americanos fizeram, ou 2, 3, 4 km ou mesmo 200 metros, para que se reduzissem os preços e melhorassem as condições de transporte? O que aconteceria com esta mulher? Ficariam ao seu lado ou virariam as costas? Como dia de reflexão, o 20 de novembro também nos leva a pensar a relação do negro com o próprio negro.
E tentando fazer um paralelo entre Brasil e Estado Unidos, devemos começar pela história de cada país, destacando que ambos tem origem com a importação de escravos, tendo a abolição da escravatura nos Estados Unidos ocorrido entre 1863/1865 e no Brasil em 1888. Isso porque lá teve uma guerra e no Brasil, não.
De cada 10 escravizados trazidos para as Américas, 4 eram trazidos para o Brasil, e 1 levado para os Estados Unidos. O que fez e faz do Brasil o segundo maior país de contingente negro do mundo, perdendo apenas para a Nigéria, em África. Hoje no Brasil o negro é em torno de 70% e nos Estados Unidos 13%. Mas, nos Estado Unidos, mesmo sendo minoria, o negro aparece como juiz, médico, dono de empresas, rico e bem sucedido, no Brasil, sendo maioria, como é a situação do negro?
A exemplo de Rosa Parks, outra reflexão que busco fazer neste dia de Consciência Negra vem em forma de indagação: por que no Brasil com uma população absolutamente maior de negros, o negro não tem uma condição de vida melhor, como a exemplo da população negra norte-americana que é absolutamente menor em relação a branca, mas que no entanto consegue obter um bom estudo, um bom emprego, e uma boa representação política? O racismo estrutural é muito forte, quase intransponível ou o negro brasileiro é menos consciente, menos ativista, ou como diziam alguns autores racistas, pelo fato do negro brasileiro ser manso e acomodado? Ou ambos, racismo estrutural associado à mansidão do negro? Eis questão, diria Willian Shakespeare.
Nesta direção, em busca da resposta de minha indagação sobre pensamentos e atos de pessoas negras, uma vez estava eu conversado com uma jovem negra e ela me disse que foi comprar um sapato em uma loja. Chegou e não foi bem atendida e que foi até a vendedora e disse: "quero comprar aquele sapato e vou pagar a vista", só para mostrar à funcionária que tinha dinheiro para comprar. Nos Estados Unidos devido à segregação oficial promovida pelo apartheid, os negros pelo fato de terem dinheiro mas não poderem experimentar as roupas, eles criaram suas próprias lojas; pelo fato dos negros serem proibidos de estudarem nas escolas dos brancos, eles criaram suas próprias escolas e universidades desde a década de 30; pelo fato de terem dinheiro e não poderem entrar e experimentar o carro, criaram suas próprias revendedoras de automóveis; pelo fato de terem dinheiro e não poderem sentar a mesa do restaurante, criaram eles os seus próprios restaurantes. E a exemplo do caso Rose Parks, os negros apoiaram os movimentos e iam estudar em escolas de negros, comer em restaurantes de negros, comprar em lojas de negros, votar em negros. E como é o caso do Brasil? negro compra em loja de negro? come em restaurante de negro? vota em negro? Não, não e não! O negro no Brasil, vota no branco que é seu padre, pastor ou patrão, mesmo sabendo que estas pessoas não produzem leis e promovem políticas públicas que o beneficie. O negro compra na loja do branco mesmo sendo maltratado, compra no supermercado do branco, mesmo tendo a todo o momento um segurança nas suas costas. Por quê isso acontece com o negro brasileiro?
Por fim, no meu entender, estas devem ser as questões a serem refletidas neste dia. A relação do negro com o negro, neste processo de luta contra um sistema racista e brutalmente hierárquico e desigual. Passado o triunfo das cotas - que no Estados Unidos remonta à década de 1930 - e que no Brasil é da primeira década dos anos 2000, quase oitenta anos depois, a luta agora ou o momento de reflexão, volta-se para o empoderamento do povo negro, do discurso e do ato do negro em ficar não apenas criticando o racismo estrutural, mas em consumir produtos produzidos por negros e negras e para negros e negras, no chamado movimento Black Money ou afro empreendedorismo, praticado há décadas nos Estados Unidos pelo povo negro e que levou ao aumento do nível econômico das populações negras norte americanas. Tal ato ou movimento envolve não apenas uma consciência econômica, mas também uma consciência política. Portanto, este dia não é para bater tambores ou ficar a falar sobre a beleza negra brasileira, mas refletir sobre a sua condição social, econômica e política e promover estratégias de como o negro pode sair de sua situação histórica de subordinação mental, social, econômica e política. E a história do movimento negro norte-americano pode nos ajudar muito, nesta reflexão e resolução.
- Referência de Filme
Selma - Uma luta pela igualdade.
- Referência de Livro
Oracy Nogueira. Tanto branco quanto preto.
SOBRE O AUTOR:
ÂNGELO SATYRO é formado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP e Antropologia pela Universidade de Brasília - UnB. Foi aluno de doutorado em Antropologia Social na Universidad Complutense de Madrid - UCM, onde morou na Europa por 4 anos e meio estudando a relação entre religião Hare Krishna e alimentação ritual.
Em Barbacena é Proponente das seguintes leis municipais:
Criação do Conselho Municipal de Igualdade Racial (Executivo)
Criação do Comissão Parlamentar Permanente de Igualdade Racial (Legislativo)
Criação do Comitê Técnico de Saúde da População Negra (Conselho Municipal de Saúde de Barbacena)
Como gestor, em Barbacena, exerceu os seguinte cargos:
Presidente do Conselho de Igualdade Racial - (2012/2014)
Gerente Municipal de Igualdade Racial - (2013/2014)
É autor dos seguintes trabalhos etnográficos que envolvem as populações negras e indígenas de Barbacena:
Relatório Etnográfico da Comunidade Quilombola dos Candendês - (2012)
Primeiro Diagnóstico Socioeconômico e Demográfico das Populações Negras e Indígenas de Barbacena - (2017)
Roteiro Etnográfico da Comunidade Rural Indígena dos Purí de Padre Brito em Barbacena, Minas Gerais- (2018)
Atualmente, é presidente do Instituto Cultural Primeiro Quilombo