Qual a saída para a crise?



Dimas Soares Ferreira nos convida à reflexão sobre o momento político do país, e pergunta: qual o diagnóstico para essa que pode ser considerada uma das mais profundas crises políticas do sistema democrático brasileiro pós-ditadura?

OPINIÃO 

Qual a saída para a crise?

Dimas E. Soares Ferreira

 

Pedro Álvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou confusão, isto é, encontrou o Brasil.

Stanislaw Ponte Preta

 

Os últimos acontecimentos políticos poderiam estar nos indicando que estamos vivendo os últimos dias do modelo de governo democrático, popular e neodesenvolvimentista inaugurado em 2003 por Lula? A adoção de uma política macroeconômica de rigoroso ajuste fiscal dentro dos marcos neoliberais, a capitulação da Presidente às chantagens impostas pelo PMDB de Temer, Cunha e Renan, a substituição de ministros comprometidos com as lutas por uma saúde e uma educação pública e as articulações políticas junto às bancadas ultraconservadoras do Congresso Nacional (Bala, Bíblia e Boi) estariam nos dizendo que o lulismo está no fim? Enfim, qual o diagnóstico para essa que pode ser considerada uma das mais profundas crises políticas do sistema democrático brasileiro pós-ditadura? 

Em 2003, com o início do governo de Luís Inácio Lula da Silva, o Brasil passou a implementar uma agenda pública bem distinta daquela que vinha sendo adotada pelo governo tucano de FHC entre 1994-2002, baseada no modelo neoliberal de gestão pública, calcada na privatização de empresas estatais, na profunda abertura comercial externa, na desregulamentação do mercado e na desindexação da economia. Lula, ao contrário, foi paulatinamente adotando um modelo de gestão rooseveltiano ou keynesiano, ou seja, um modelo muito parecido com o que Francklin Dellano Roosevelt adotou nos EUA a partir de 1933, baseado em um estado centralizador focado em políticas anticíclicas de desenvolvimento a partir do investimento estatal e da adoção de um conjunto de políticas de proteção e assistência social. 

No Brasil, esta agenda rooseveltiana passou a ser chamada de “lulismo”. E foi a partir desse modelo de gestão keynesiana que o Partido dos Trabalhadores, até então um partido eminentemente de massas localizado à esquerda do espectro político-ideológico, começou a dar uma guinada na direção de se transformar em um partido de cartel. Num jogo pesado para garantir apoio suficiente no Congresso Nacional para aprovação das propostas de lei enviadas pelo Executivo Federal o PT passou a fortalecer, através da distribuição de recursos de poder (cargos, nomeações e verbas), os mandatos parlamentares que, por sua vez, passaram a ter o controle sobre as estruturas partidárias. É quase um modelo de estado fordista fundado numa espécie de neoclientelismo a partir do próprio estado. Dessa forma, parlamentares passaram, cada vez mais, a negociar apoio parlamentar em troca de recursos de poder e esse modelo de troca-troca (já conhecido do sistema político brasileiro, mas agora levado às últimas consequências) se reproduziu junto aos estados e municípios. De modo que governadores e prefeitos de diferentes partidos, sejam eles de oposição ou situação, passaram a negociar verbas, projetos, investimentos e programas governamentais federais em troca de apoio político. Assim, prefeituras do país inteiro passaram a adotar os mesmos programas e a fazer os mesmos investimentos nas áreas da saúde (Farmácia Popular, Mais Médicos, UPAs), educação (Creches Pró-infância, Pronatec), habitação (Minha Casa Minha Vida) etc. 

Enquanto isso tudo acontecia não percebíamos, pois estávamos todos envolvidos em nossa sanha pelo consumo de bens incentivados por taxas de juros e inflação baixas e pelos subsídios concedidos pelo governo para induzir o crescimento do mercado interno, que outro componente da crise ganhava corpo, qual seja, a crise de representação política formal. A democracia brasileira adota um modelo partidário muito parecido com o modelo de partidos políticos criado ao longo dos séculos XVIII-XIX pela democracia liberal europeia. Mas, este é um modelo que se mostra esgotado no mundo todo devido à profunda fragmentação dos interesses sociais. No Brasil, especificamente, a prova do esgotamento deste modelo de representação está na absurda enormidade de partidos políticos hoje registrados no TSE (35) e com representação no Congresso Nacional (28). E também, nas manifestações populares de 2013. Naquele momento, milhares de jovens saíram às ruas não num movimento monolítico de massas, mas num mosaico de múltiplos grupos de interesses saídos das redes sociais na Internet. Um mosaico composto dos que lutavam contra o aumento das tarifas do transporte público, dos que lutavam por direito à moradia, dos que diziam que ninguém os representava, dos black blocs e tantos outros. Ali ficou claro que estávamos num divisor de águas de nossa democracia recente. Ou avançaríamos rumo a mais democracia e a novas formas de representação e, sobretudo, de participação no processo político nacional. Ou veríamos um retrocesso colossal de nossas instituições e de nossas regras democráticas. 

Hoje, após 12 anos de lulismo com forte desenvolvimentismo social e pesados investimentos estatais visando transferir parte do PIB para camadas mais pobres e com o esgotamento deste modelo keynesiano iniciado em 2003, percebe-se claramente uma frustração generalizada na população em todos os seus segmentos. Entre as camadas mais abastadas (classes A e B) prevalece a indignação porque não se viram privilegiados pelo lulismo, ao contrário, viram seu status quo ser reduzido e se aproximar dos níveis materiais da classe média baixa (classe C). Além disso, os escândalos de corrupção passaram a mover o ódio destas classes sociais contra um governo que, segundo eles, rouba os cofres públicos para sustentar um projeto de poder que em momento algum lhes beneficiou de alguma forma. Já a classe C não obstante sua significativa ascensão social nos últimos anos através do consumo de massa continuou muito distante das classes de alto consumo, principalmente no que se refere ao acesso à saúde, educação e transporte público de qualidade, daí sua justa indignação. 

Enfim, esse modelo de inclusão social através do consumo e não através da difusão dos direitos sociais criou um enorme problema para o PT, para o lulismo e para a esquerda de modo geral. Fazendo emergir um neoconservadorismo popular baseado na família e na busca por bens como forma de garantir o status quo. O que a velha direita racista e conservadora brasileira, principalmente do Centro-Sul soube muito bem capitalizar para seu próprio interesse. E dessa forma, criaram-se as condições conjunturais para se retomar o velho e adormecido projeto neoliberal, enquanto setores historicamente dominados pela esquerda, como a música, hoje carrega preconceitos de toda ordem e apologias ao crime, às drogas, ao sexo e à violência de toda forma, ou o jornalismo dominado agora por editorias que clamam diariamente por golpes contra a democracia desqualificando a política, jogando todos os seus atores na vala comum perante a opinião pública. Tudo isso gerando uma lógica pré-fascista manifestada por lideranças políticas neopopulistas ligadas aos mais conservadores interesses religiosos, militaristas, agrários etc. 

Mas, nem tudo está perdido. Esta crise também tem servido para fortalecer um fenômeno social de conscientização política de classes até então excluídas do debate público que agora passaram a compreender os programas sociais como um direito inalienável e tornaram-se atores políticos independentes e relevantes, livres do velho cabresto imposto pelas oligarquias e pelos coronéis. Que sociedade surgirá disso tudo? Ainda não sabemos dizer, mas nunca mais seremos como antes.

 

O autor é Doutor em Ciência Política pela UFMG e Mestre em Ciências Sociais pela PUCMinas. Diretor do Sinpro Minas e da Contee. Revisor ad hoc do eJournal of eDemocracy and Open Government e da Revista Temas da Administração Pública da Unesp. Membro do Comitê Científico da Revista Extra-Classe. Professor da Epcar e vencedor do XI Prêmio Tesouro Nacional em 2006.

 

 

Este artigo foi produzido a partir dos debates realizados no Colóquio Nacional “Qual a saída para a crise?”, organizado pelo Grupo Opinião Pública, ligado ao Departamento de Ciência Política da UFMG.

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