A farsa das leis antiescravistas e o caso do Sr. João

Artigo escrito pelo advogado barbacenense Alex Guedes dos Anjos. Leia mais...

PERSONALIDADES

A farsa das leis antiescravistas e o caso do Sr. João

Hoje, 13 de maio, é dia do Sr. João levar flores no túmulo da Princesa Isabel. João Paulino Barbosa é lavrador e poeta de Desterro do Melo – MG. Segundo conta, seu avô paterno foi trazido da África na segunda metade do século XIX e libertado da escravidão apenas no fatídico 13 de maio de 1888. No ano passado sua história ganhou notoriedade a partir de uma entrevista dada à Globo[1], o que rendeu até um encontro com o bisneto da princesa.

O que talvez o Sr. Não saiba é que seu avô foi escravizado de forma contrária às leis da época. Nos termos do tratado internacional firmado em 1826 entre D. Pedro I e o Rei Jorge IV da Inglaterra, desde o dia 13 de Março de 1830 não mais seria “licito aos Subditos do Imperio do Brasil fazer o Commercio de Escravos na Costa d'Africa, debaixo de qualquer pretexto, ou maneira qualquer que seja. E a continuação deste Commercio, feito depois da dita época, por qualquer pessoa subdita de Sua Magestade Imperial, será considerada, e tratada de pirataria”[2].

Após a abdicação de Dom Pedro I, a Regência deu prosseguimento a tal política, criando legislação nacional sobre o tema em 7 de Novembro de 1831, na qual foi ratificado que "todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres". Foi nossa primeira lei para “inglês ver”, daí a expressão usada até os dias hoje.

Tais normas em nada mudavam a situação dos escravos que haviam chegado anteriormente à data de vigência, a propriedade sobre tais seres humanos continuava legal.

E também não afetava os descendentes destes, pois segundo antiga regra do Direito Romano - partus sequitur ventrem - aquele que nasceu de uma mãe escrava iria seguir o mesmo destino se tornar um escravo.

As autoridades fingiam acreditar que os escravos mais novos eram descendentes daqueles que já estavam em terras brasileiras, mentalidade que só alterou a partir de quando surgiu a Lei Eusébio de Queiroz (Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850), como se já não houvesse um tratado internacional e mais uma lei nacional. Os jornais da época noticiam que o último navio negreiro desembarcou por aqui em 1852, mas é bem provável que muitos outros escravos tenham sido trazidos em escala menor até a Lei Áurea.

Os filhos de mãe escrava foram libertados apenas com a Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871). Diferente do que normalmente se pensa, nenhuma criança ganhou o direito viver a sua infância. A lei era aplicável apenas aos nascidos depois daquela data, os quais ainda estavam obrigados a trabalhar a partir dos 8 anos e seriam liberados de suas obrigações servis apenas aos 21 anos ou mediante o pagamento de uma indenização de 600 mil réis, feita pelo Estado ao senhor. Foi então criado o Fundo de Emancipação que seria usado para liberar “em cada Provincia do Imperio tantos escravos quantos corresponderem á quota annualmente disponível”.

Apesar do enriquecimento ilícito proporcionado pela escravização ilegal dos africanos por décadas, os prejuízos dos senhores com a perda de propriedade deveriam ser suportados por todos os contribuintes. É a velha história, privatiza-se o lucro e socializa-se o prejuízo.

No caso da Lei do Ventre Livre, o impacto foi mínimo na dívida pública, pois a lei previu uma indenização três vezes menor do que o preço médio de um escravo naquela época[3]. “Segundo dados obtidos no Relatório do Ministro da Agricultura de 1885, do total de quatrocentos mil ingênuos – foi com essa denominação que os filhos livres das escravas passaram a ser conhecidos – registrados até aquele momento, apenas cento e dezoito foram entregues ao Estado em troca da indenização de 600$000, número que não correspondia a 0,5% do total de crianças nascidas livres de mãe escrava em todo o país”[4].

Exatamente quatorze anos mais tarde foi criada a Lei dos Sexagenários (Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885), que liberava os escravos de 60 anos, os quais ficam, “porém, obrigados, a titulo de indemnização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de tres annos". Como se já não bastasse toda uma vida inteira de trabalho forçado, os senhores se sentiam credores de mais três anos de exploração de mão-de-obra. Vale lembrar que naquela época a média de vida era muito baixa, mais da metade dos escravos morriam com menos de 30 anos de idade e menos de 10% chegavam aos sessenta anos.

A Lei dos Sexagenários na verdade não só liberava os idosos. Através dela, o Governo prometeu colocar um fim gradual à escravidão mediante a liberação de indenizações para escravos de todas as idades, o que acabou não acontecendo, pois três anos depois foi assinada a famosa Lei Áurea (Lei nº3.353, de 13 de maio de 1888) sem prever qualquer pagamento.

Os donos de escravos sentiram-se traídos e vítimas de confisco. Inconformados com a situação, uniram-se com os republicanos e deram o golpe de Estado que pôs fim à Monarquia no Brasil.

 

A Princesa Isabel, que seria a primeira mulher a governar o Brasil, perdeu seu direito ao trono. E como se a escravidão não tivesse sido extinta há pouco mais de um ano e meio, a República recém-proclamada não teve a menor vergonha em aclamar em seu hino que “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”, transformando o dia de ontem em passado remoto. Foi então, dessa forma, oficializado o esquecimento.


 

Alex Guedes dos Anjos

Foto: Washington Alves/Estadão 

 

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